Há mais de dez anos que me dedico obstinadamente a uma espécie de arqueologia cultural nessas ruínas que são as vidas de poetas cuja memória se foi esmaecendo, a resgatar obras soterradas sob os escombros de décadas de esquecimento, a salvar espólios. Tenho consciência de que sei mais sobre o novelo biográfico de alguns desses poetas do que sobre o dos meus avós e bisavós, dos quais não sei quase nada.
Em agosto de 2016 escrevi o ensaio: «António Pedro. Em mansamente dolorida ausência e uma saudade mansíssima: os primeiros vinte anos e a poesia dos anos 20» [no contexto do cinquentenário da morte do poeta]. Fui, então, transportado para a cidade da Praia, onde António Pedro nasceu, em 1909. Não conheço Cabo Verde, esse arquipélago que concebo miticamente nesse espaço interior em que a infância sobrevive em nós para que possamos sobreviver a essa qualquer coisa incurável que é a vida materializada em quotidiano.
Ocorreu-me que, na minha infância, a minha avó Laura – mãe do meu pai – falava ocasionalmente dos seus antepassados de Cabo Verde, não sei se imaginando [sem qualquer pretensão geográfica] essa África insular, montanhas de fogo a pontuar o azul incomensurável.
Cresci na periferia da casa e dos afetos dos meus avós paternos, mas não sabia nada sobre o meu bisavô Simão Correia Mendes, pai da avó Laura. Curiosamente, herdei a sua única fotografia: esmaecida, deteriorada pelo tempo, uma fotografia silente como todos os documentos sem história.
Em agosto de 2016, fui investigar e descobri que o bisavô Simão nasceu no final da década de 70 do século XIX. Soube que foi abandonado e entregue no Hospício dos Expostos de Penafiel. Com 23 anos, em 1902, casou com a bisavó Margarida, com quem teve 12 filhas e, finalmente, um filho [o tio-avô Joaquim, que morreu novo, mas deixou muitas histórias… nem sempre edificantes]. Mais tarde, o bisavô Simão abandonou o contexto familiar e a vida empurrou-o para o Bairro da Sé, no Porto, onde viveu pobremente com os proventos que o ofício de carrejão na Estação de S. Bento ou na Alfândega lhe possibilitava. Estando muito doente, foi o seu genro, o meu avô António [de quem herdei o apelido Teixeira], que o resgatou dessa vida de miséria e lhe proporcionou uma morte digna, em 1939.

E isto é tudo o que sei sobre o bisavô Simão. A minha avó Laura arrancava do fundo de uma inquietação qualquer a história que dizia que o seu pai era mestiço e que, por isso, em Penafiel, eram chamados «mulatos». E apesar de lhe não agradar a alcunha, às vezes dizia-me que os seus antepassados eram «marajás» de Cabo Verde e que o carteiro, um dia, traria a boa-nova de uma herança. Talvez por ressentimento, deixava escapar, de vez em quando, como quem desabafa a pobreza com ironia e resignação: «Ainda havemos de ter criados!».
Para a avó Laura, «marajás» eram pessoas muito ricas, mas a avó Laura não conhecia marajás, nem tinha um mapa-múndi que lhe colorisse o sonho e a distância. Coube-me a mim passar a infância à espera do carteiro, com o coração acelerado quando o via dobrar a esquina, no cimo da rua.
O passado cabo-verdiano da avó Laura não era uma evidência. Evidência eram as suas feições e as das suas irmãs: dir-se-iam muito morenas se não tivessem uns olhos tão negros, lábios tão grossos, cabelos tão crespos.
Passados tantos anos, a história faz algum sentido. Eram muitos os expostos mestiços nesses tempos em que a escravatura já tinha sido abolida, mas persistia sob a forma de criadagem, certamente com menos repressão, mas com as mesmas serventias. E se os expostos brancos eram crianças bem pouco afortunadas, os expostos pretos e mestiços juntavam ao abandono a cor da pele, configurando assim uma situação de dupla exclusão social.
Em agosto de 2016, soube que em 1879 e 1880 foram entregues quinze crianças anónimas do sexo masculino no Hospício dos Expostos de Penafiel. Talvez tivessem chamado Simão a essa, abandonada na Rua da Saudade, à porta da casa de Joana Nunes, fiadeira, na madrugada do dia 13 de junho de 1879, envolta num pano de baeta velho, dois lenços brancos na cabeça e uma camisa de morim com renda no pescoço, como se lê no Registo dos Expostos do Concelho de Penafiel.
Não sei – e não é possível saber – se a minha trisavó era cabo-verdiana, nem estou certo de que era mestiça essa criança abandonada na Rua da Saudade. Há um passado sem história que, ainda assim, é todo o passado que existe.