Ocorreu-me este apontamento escrito no meu moleskine, em Paris, em maio de 2014:

Cheguei ao Cemitério do Père-Lachaise: uma cidade construída para os mortos dentro da cidade dos vivos, mas bem delimitada, não tanto pelos imponentes muros, mas fundamentalmente pela consciência de que este é um domínio que os vivos não cobiçam. Aqui percebe-se que honramos os mortos com monumentos fúnebres com a pretensão de prender a memória por meio dessa atadura abstracta que é um epitáfio ou um nome inscrito na pedra, ou a vacuidade de expressões como “morada perpétua”.
É estranho: os monumentos fúnebres são os instrumentos com que esquecemos os mortos, edificamos-lhes memoriais em pedra para que possamos esquecê-los sem que nos sintamos culpados… e para que eles nos esqueçam. Mas nem nós os lembramos, nem a morte se esquece de nós. É aterrador: aqui, no meio de tantos memoriais, só há esquecimento. Na verdade, os corpos já se decompuseram, os túmulos estão em ruínas e um dia não restará memória do Cemitério do Père-Lachaise e não haverá quem lembre a beleza de Paris ou a glória da França. “C’est la vie! La réalité sans espoir”.
E neste silêncio grave, consigo escutar o rumor da morte.
Só há turistas e mortos no Cemitério do Père-Lachaise. Os turistas passeiam pelo cemitério com a mesma displicência com que percorrem os corredores do Louvre. Procuram a sepultura de uma celebridade com a mesma gula ingénua com que se detêm diante da Gioconda. Têm mais olhos que barriga.
Eu também passei pela sepultura de Balzac, de Proust e de Oscar Wilde, mas vim ao Père-Lachaise com um propósito bem definido. Li recentemente as memórias de Paris de Diogo de Macedo – «14 Cité Falguière» –, onde me apaixonei pela pessoa de Amedeo Modigliani [há muito me apaixonei pelo pintor…]. Queria sentar-me junto à sua sepultura, onde também se encontra o corpo de Jeanne Hébuterne. Na verdade, foi por causa de Jeanne que vim ao Cemitério do Père-Lachaise. Amedeo morreu no dia 24 de janeiro de 1920 [vítima de tuberculose e de uma dessas vidas de que se morre antes que o tempo traga a morte]; no dia seguinte, Jeanne [com uma filha com pouco mais de um ano e grávida de oito meses] põe fim à sua vida [vítima de uma dessas mortes de que se vive antes que o tempo traga a vida]. Só passados nove anos o seu corpo [cujo útero se converteu num sombrio e solene ataúde] se juntou ao de Amedeo.
Aqui sentado, junto a flores mortas, tristes como melopeias sobre o granito, disse-lhe algo que não me atrevo a escrever.
Começou a chover. Não tenho um cigarro que possa fumar. Um corvo hierático e lúgubre pousou numa sepultura próxima. Podia ser um pássaro azul, onírico, de esplêndidas asas metafísicas… mas é apenas um corvo, negro como são os corvos.
Está na hora de regressar ao mundo dos vivos. Talvez não volte à sepultura de Amedeo e de Jeanne. Há coisas que só se dizem uma vez, confissões que não podem ser repetidas.