Buenos Aires acolheu-me com chuva, na manhã de Domingo de Pentecostes.
Mesmo se fechasse os olhos no percurso entre o aeroporto e o centro de qualquer cidade, as periferias continuariam a existir. É como se me lembrassem que no mundo dos homens a beleza é uma exceção artificial, a cosmética com que se disfarça a irreprimível tendência para a entropia da miséria, da caducidade, da grandíloqua performance da morte no seu irónico prosaísmo.
Eram dez horas quando me instalei no hotel. Tinha saído de casa pelas dezassete do dia anterior. O tempo é uma das mentiras com que tornamos suportável a vida.
Saí para as ruas do bairro de San Cristóbal, sem guarda-chuva nem pesos argentinos. Entre as casas típicas do final do século XIX e outras que recordam tempos de prosperidade, em meados do século XX, só a miséria se entranha nas paredes, esbate as cores e infeta as vidas. Percorro quilómetros a pé: Independencia, Entre Rios, Callau, Santa Fe…
Já tinha pesos argentinos quando entrei na livraria El Ateneo: um bom lugar para me abrigar da chuva e aceder a uma rede wi-fi livre. Perguntei a um funcionário pelos livros de Julio Ramón Ribeyro. Não havia. Nem sequer o conhecia. Encontrei dois livros de Pessoa. Ponderei comprar uma antologia bilingue da poesia de Sharon Olds. Borges e Galeano com algum destaque. A literatura circunscrita a meia-dúzia de estantes numa das livrarias mais visitadas do mundo.
Chove em Buenos Aires. Ocorre-me o “Invierno Porteño” de Astor Piazzolla. Entretanto, anoiteceu em Buenos Aires, como mais cedo ou mais tarde anoitece em todos os lugares.
Buenos Aires | 15 de maio de 2016