O mestre Julio Ramón Ribeyro escreveu: “A biblioteca pessoal é um anacronismo. Ocupa demasiado espaço em casas cada vez mais pequenas, fica cara e nunca é realmente aproveitada, tendo em conta o seu custo ou dimensão. Um livro lido, bem vistas as coisas, não está já no nosso espírito, sem ocupar espaço? Para quê conservá-lo, então? E por acaso não abundam, atualmente, as bibliotecas públicas, nas quais podemos encontrar não só aquilo que queremos, mas mais do que queremos? A biblioteca pessoal responde a necessidades de tempos idos: quando se vivia num castelo ou num solar, que por estarem longe do mundo obrigavam a que se tivesse o mundo à mão, encadernado; quando os livros eram raros e muitas vezes únicos e era imperioso possuir o cobiçado incunábulo; quando as ciências e as artes evoluíam com menos rapidez e o conteúdo dos livros podia manter-se válido por várias gerações; quando a família era mais estável e sedentária, e a biblioteca podia transmitir-se numa mesma morada e divisão e nos mesmos armários sem perigo de dispersão. Estas circunstâncias já não se verificam. E, no entanto, há loucos que querem ter todos os livros do mundo. Porque são demasiado preguiçosos para ir às bibliotecas públicas; porque acham que basta olhar para a lombada de uma coleção para pensar que já a leram, porque se tem vocação de coveiro e se gosta de estar rodeado de mortos; porque nos atrai o objeto em si, à margem do seu conteúdo, o cheiro, o tato. Porque uma pessoa acredita, contra toda a evidência, que o livro é uma garantia de imortalidade e que formar uma biblioteca é como edificar um panteão no qual se gostaria de ter reservado o seu próprio nicho” [‘Prosas apátridas’, Porto, Edições Ahab, 2011, pp. 113-114].

Eu tenho uma profunda admiração pelo mestre Julio Ramón Ribeyro, mas este texto angustia-me. Não se trata de discordar, mas de dissecar a argumentação e, eventualmente, desdobrá-la em contra-argumentação:
1. Sim, a biblioteca pessoal tende a ser um anacronismo, pelo espaço que ocupa, pelas casas pequenas em que vivemos e por não dispormos de tempo para aproveitar uma grande biblioteca.
2. Sim, um livro lido já está no nosso espírito sem ocupar espaço… mas eu estou numa fase da minha vida em que a releitura não é menos importante do que a leitura, e a consulta específica de muitos dos livros é cada vez mais necessária.
3. Sim, apesar de tudo, há bibliotecas públicas com mais livros do que precisamos, com mais do que o que procuramos e com muito mais do que se pode ler durante uma vida.
4. Sim, é verdade que há hoje mais leitores do que castelos ou solares, o livro já não é um objeto raro [se não tivermos em consideração o universo da bibliofilia] e há áreas do conhecimento que evoluem a um ritmo que torna facilmente obsoleta a sua bibliografia específica. E sim, é verdade que as famílias eram mais estáveis e as bibliotecas eram heranças incrustadas nos imóveis que se herdavam.

Numa perspetiva mais pessoal, a segunda parte da [contra-]argumentação:
5. Não, não sou um desses ‘loucos’ que querem ter todos os livros do mundo, embora não sejam poucos os que eu tenho e os que queria ter.
6. Não sou demasiado preguiçoso para ir às bibliotecas públicas; as bibliotecas públicas são dos sítios onde me sinto melhor; e não ser [saber ser] preguiçoso é algo que lamento sinceramente.
7. Não, não acho que basta olhar a lombada de uma coleção para pensar que já a li, mas basta pensar no conteúdo de um livro que tenha lido para pensar na sua lombada.
8. Não, não tenho vocação de coveiro, mas tenho de admitir que gosto de estar literariamente rodeado de mortos.
9. É verdade que me atrai o objeto, mas não à margem do conteúdo. Atraem-me todas as qualidades de um livro, das quais não excluo as qualidades sensíveis do objeto.
10. É muito simbólica [e conceptualmente circunscrita] a imortalidade que os livros garantem. Mais: não considero a imortalidade desejável. Ao reunir livros na minha biblioteca, não procuro edificar um panteão no qual gostaria de ter reservado o meu próprio nicho… mas às vezes pergunto-me se esta minha tendência para erguer estantes de livros não é um modo de insonorizar o meu mundo, de adornar a minha realidade existencial como quem obstinadamente adorna as paredes do seu túmulo.

Pintura: Vieira da Silva [1908-1992]