Em 2014, a convite do Pedro Valinho, escrevi este pequeno artigo para a revista ‘Fátima XXI’ [revista cultural do Santuário de Fátima]: ‘E os vossos jovens terão visões [Joel 2, 28]: As crianças de Fátima e a visão do [in]visível’ [n.º 2, out. 2014, pp. 64-66].

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Quando um dos meus filhos, com algum espanto, me pergunta: “Estás a ver?”, fico invariavelmente apreensivo. Temo não ver. Sinto que aquilo que eu vejo não corresponde àquilo que ele está a ver ou quer que eu veja. Temo decepcioná-lo. E não se trata de uma angústia despropositada, mas da consciência de que na minha infância ocorria sentir-me só diante das minhas visões, com algum receio de ser incompreendido ou de sentir-me ainda mais só por ver algo que, ao meu redor, ninguém conseguia ver. E o que via? Coisas que veem as crianças, com a liberdade de não estar ainda condicionado pelos compartimentos estreitos do visivelmente correto, poder ser sinestésico e usufruir de outras disfunções antes de ser sinalizado para um gabinete de psicologia.
A infância é esse tempo em que, com mais ou menos consciência, nos vamos progressivamente decepcionando com as limitações dos adultos, com a sua insensibilidade e falta de empenho no exercício da vidência. Creio que aceitamos a inevitabilidade do estado adulto sob o peso das decepções.
Com o tempo, ter visões não significa o mesmo que ver. São coisas diferentes. Na infância é quase indistinto ver e ter visões. É o impacto do tempo nas estâncias da vida que nos permite ver mais com olhos de ver e nos impõe ver menos com olhos de ter visões. Desde um ponto de vista pragmático, tornamo-nos mais eficientes a ver e necessariamente menos videntes.
Talvez todas as crianças partilhem de algum modo a vidência. Algumas — muito poucas — permanecem videntes por toda a vida. E outras — também poucas — recuperam a vidência depois de tê-la perdido no fim da infância. Creio que há graus de vidência: há crianças mais videntes do que outras. Ou seja: nem todas perscrutam do mesmo modo as transparências mais ténues, as mais secretas vibrações dessa invisibilidade onde, entre outros mistérios, Deus segreda intimamente aos homens palavras impronunciáveis, imagens só visíveis por dentro da sua intrínseca invisibilidade.
Acredito que quando um dos meus filhos me pergunta: “Estás a ver?”, pode ser Deus que me chama a ver algo que só é visível aos olhos de quem tem visões, e não aos olhos de quem apenas vê. E naquilo que vemos, porquanto já não temos visões, escapa-nos essa beleza que — como escreveu Afonso Lopes Vieira — justifica o mundo.
Perguntam-me frequentemente se acredito nas aparições de Fátima. A pergunta traz normalmente a provocação insinuante de quem ou parte erradamente do pressuposto que acreditar nas aparições de Fátima é o mesmo que acreditar em Deus, ou defende preconceituosamente a teoria do embuste. Confesso que nem os meus estudos teológicos me tornam um especialista sobre Deus, nem a leitura da mensagem de Fátima me ajuda a visualizar as visões daquelas crianças. Acredito sinceramente que se trata de uma questão de humildade: quanto mais bons livros de teologia leio, mais denso se torna o meu silêncio sobre Deus; do mesmo modo, quanto mais olho a fotografia daquelas três crianças, mais penso nas suas visões, mas de um modo embaçado, procurando abstrair-me do conteúdo da mensagem, do vocabulário, da construção sintática. Perdemos muito tempo a tentar racionalizar realidades que não são de ser racionalizadas. Racionalizar tem, neste contexto, o propósito de possuir; é um compreender possessivo: compreendemos o que conseguimos compartimentarizar no espaço muita vezes exíguo da nossa razão. E temos a ilusão ligeiramente perversa de que, assim, essa realidade nos pertence. Não deixa de ser um exercício de tacanhez.
É como quando enjaulamos animais selvagens nos compartimentos dos nossos jardins zoológicos, procurando com truques de cosmética incutir a sensação de que estamos numa selva indiana a poucos metros de um tigre, quando na verdade isso não passa de um lenitivo para um imaginário miseravelmente pobre. Eu recusar-me-ia a visitar uma réplica do Taj Mahal que construíssem na minha cidade. Eu que, se pudesse, viajaria até à Índia com o único propósito de ver o Taj Mahal. Eu que tenho a certeza de que o Taj Mahal que eu vejo quando fecho os olhos é significativamente mais esplêndido do que o verdadeiro Taj Mahal e incomparavelmente mais autêntico do que a réplica que construíssem na minha cidade.
É como quando, depois de enjaularmos obras de arte num museu, passamos pelos corredores a fotografá-las ou a filmá-las. Ou como quando fotografamos ou filmamos a atuação dos nossos filhos na festa da escola. Há uns anos enjaulávamos realidades em álbuns de fotografias e em cassetes de vídeo, agora enjaulamo-las em formatos digitais… sempre com o mesmo pretexto [quase sinistro] de guardá-las e revê-las sempre que demiurgicamente quisermos recuperar o passado. O problema é que perdemos o presente: não chegámos a olhar contemplativamente a obra de arte, não chegámos a olhar contemplativamente os nossos filhos; estivemos preocupados com o enquadramento, com a bateria da máquina, com as pessoas que passavam à nossa frente. Infelizmente, trocamos o presente por uma relíquia desfocada que talvez não voltemos a ver, que talvez não produza prazer quando eventualmente a reproduzirmos e que nos impediu a experiência contemplativa.
Conheço gente que reduz a sua experiência espiritual a uma pagela ou a objetos com pretensão de relíquia barata, apologia da feiura e da mediocridade a que tentadoramente cede o comércio religioso. Eu prefiro não ver Nossa Senhora a vê-la numa pagela feia ou numa estatueta fosforescente.
Não estou a desviar-me do sentido da minha reflexão. É claro que as nossas crianças tiveram e continuarão a ter visões, visões tão autênticas e impressivas que carecem do nosso imaginário, não só para que as aceitemos, mas também para que possamos partilhar a sua beleza… sim, essa beleza que justifica o mundo. Quem olha, vê. Quem olha contemplativamente, tem visões. E são as pessoas que têm visões que justificam o mundo.
Não guardo o amor da minha mãe numa caixa, nem numa fotografia. A mensagem de Fátima é uma explicação, tenta racionalizar uma experiência não racionalizável. O que aquelas crianças viram não se circunscreve ao folclorismo com que a história nos é contada. Não gosto de jardins zoológicos e os museus servem para o que servem, assim como as caixas, assim como as máquinas de fotografar ou de filmar.
Penso no que aquelas crianças viram quando tiveram as visões: uma luz, uma imagem nas transparências mais ténues, nas mais secretas vibrações dessa invisibilidade onde, entre outros mistérios, Deus segreda intimamente aos homens palavras impronunciáveis, imagens só visíveis por dentro da sua intrínseca invisibilidade. Se não encontrarmos beleza nas visões daquelas crianças, a mensagem de Fátima não poderá justificar o mundo.
O que aconteceu em 1917, na Cova da Iria? Não sei. Não posso saber. Mas se fechar os olhos, o meu imaginário ajoelha-me diante da azinheira e sinto uma comoção como se fosse o amor de Deus ou algo igualmente belo para o qual ainda não existam palavras. Fecho os olhos porque, como escreveu Jorge Melícias, a cegueira é ainda uma forma de ver. Fecho os olhos e uma das crianças pergunta-me com algum espanto: “Estás a ver?” Não respondo. Não tenho palavras.